por Lisa Alves
“Não se vive a desgraça a não ser
através do próprio corpo”
O corpo habita uma rede de poder complexa. O corpo habita um universo regido pelo tempo: pelas leis desse tempo e por quem tem poder nesse tempo – um poder que se perpetua por gerações como se fosse uma herança genética (mas prefiro chamar de impunidade, de controle e de colonização subjetiva). Um poder que privilegia corpos específicos e domina todos os demais.
“E eu custava a crer que houve um tempo em que as mulheres lambiam as feridas abertas e eretas dos machos. Eu pouco falava, minha língua ainda estava presa no solo sólido da boca, algumas vezes soluçava, talvez fosse um resquício humano, esse soluço repentino.” (A Puta, pág. 8)
Em 104 países, segundo um estudo do Banco Mundial (2018), corpos fêmeas são proibidos, por lei, de exercerem alguma atividade ou fazer alguma coisa: estudar, trabalhar, votar, tomar decisões como (viajar, escolher parceiro(a), qual roupa usar, que horas e quando sair de casa). Já em outros países, apesar de vários avanços no campo da equidade de gênero, o corpo fêmea continua alienado à maternidade e ao trabalho doméstico.
“Eu arranquei o meu útero e com isso a probabilidade de perpetuar a espécie, o útero é um órgão infectado, ele possui o fantasma do homem. Não quero ser um criadouro de monstruosidades. Mas, é possível respirar e não se sentir responsável pelas perversidades do mundo¿ Às vezes, deito, fecho os olhos e vejo uma ilha cheia de assombrações, todas à procura de um corpo perfeito para encarnar, mais fácil seria adotarem a forma dos animais bestializados, dos bodes com chifres exuberantes ou dos touros cansados, esperando resignados o dia do abate. Antes de engatinhar os homens já arquitetaram dois mil planos com a intenção de arruinar os seus semelhantes. (A casa das aranhas, pág. 39)
No Brasil, em 2019, segundo informações “oficiais” do governo misógino, a cada sete horas um corpo fêmea foi assassinado por feminicídio. Fico aqui imaginando a quantidade real desse número de corpos – corpos que foram subtraídos da vida por não terem uma genitália que carrega testículos, bolsa escrotal, vesículas seminais, epidídimos e próstata. Corpos que nunca mais existirão.
“Vamos pare agora com esse chororô a culpa foi toda sua nenhum homem toca em um fio de cabelo de uma mulher se ela for obediente ficar calada mas parece que as mulheres são incapazes de controlar a língua você deve se lembrar de como eu a tratava bem no jardim de infância isso porque você merecia você não abria a merda dessa boca depois cresceu e deu para pensar sim você achava que pensava ah meu Deus…” (O enterro do lobo branco, pág.37)
O enterro do lobo branco (2017)
CONVERSA COM A AUTORA
Lisa ::: “Não se vive a desgraça a não ser através do próprio corpo” foi uma das afirmações que mais me marcaram em “A Casa das Aranhas”. Vejo na tua trilogia uma narrativa de dominação e uma presença de vozes destituídas de qualquer sinal de dignidade e liberdade, vozes que passaram por desgraças derivadas de uma rede de poder complexa.
Como a loucura, a miséria e as mulheres (que inclusive não possuem um nome fixo e podem ser qualquer uma: Augustina, Estela, Ester…) foram se fixando durante seu processo de construção da trilogia?
Márcia ::: Parece que esses temas sempre me rondaram, desde o início, talvez porque sempre estive bem próxima à loucura e à miséria… Parece que todas as mulheres já nascem próximas à loucura e a miséria, a histeria é puramente feminina… Ser mulher é extremamente complexo, somos bombardeadas por padrões que não conseguimos ao menos entender. A ideia de uma mulher de nome cambiável surgiu a partir do meu entendimento sensível do que uma mulher representa para o universo masculino, parece que não passamos de bonecas infláveis com rostos iguais, corpos iguais e nomes diferentes…
Lisa ::: Por falar em representação da mulher no universo masculino: acompanho teu trabalho desde o início, desde o tempo de ouro dos blogs e também nas redes sociais. Nas redes, vejo muitos homens dizendo que amam tua escrita, mas fazendo comentários objetificadores, vejo mulheres condenando tua escrita, a própria rede bloqueando o seu perfil, o que a obrigou a criar três perfis (até onde sei). Eu li tua obra e sei que não se trata de nenhuma intenção em objetificar os corpos, não é uma tentativa barata e fácil de escrita para tentar agradar um público específico, pelo contrário, o que eu vejo é uma intenção que nasce do caos, algo que muda a ordem, um movimento anárquico dos sentidos, algo como destruir completamente a função preestabelecida dos órgãos (leia-se sistemas também), algo que desconstrói o masculino e feminino, algo que implode o conceito criacionista. Teu texto não é simples, teu texto é um aglomerado de metáforas que se utiliza do corpo de uma forma genial, o que me impede de considerar essas pessoas analfabetas funcionais, pois ler Márcia Barbieri não é nada fácil, mas considero no mínimo curioso ver essa reação de pessoas que inclusive são do universo da criação: artistas, cantores(as), escritores(as) e afins.
O corpo é uma geografia desconhecida?
Márcia ::: Engraçado como as coisas podem ser deturpadas ou mal interpretadas. Acontece mesmo muito isso, homens interpretando minha escrita como uma forma barata de “encantá-los”, muitas vezes fazem uma leitura superficial e por isso, equivocada. Mantenho uma página do livro “A Puta”, nessa página, apesar de estar explicado que se trata de um livro, recebo várias mensagens inadequadas, esses dias recebi um telefonema de um homem querendo saber qual era o preço do programa, tive que explicar pacientemente que a página era para a divulgação do livro, eu era escritora e não prostituta. Eu escrevi a trilogia do Corpo porque eu também me sinto totalmente ignorante em relação ao corpo, ele está o tempo inteiro conosco, mas não deixa de ser uma geografia desconhecida e tão surpreendentemente desconhecida que ainda causa vários e vários equívocos. O corpo nos coloca em várias enrascadas, ele nos lembra o tempo todo que não passamos de animais, adestrados, mas ainda assim animais.
Lisa ::: Gosto da ideia dessa consciência que somos animais e não máquinas sagradas. Lembrei de um filme, um drama pseudo-documentário americano de 1971 chamado “Punishment Park” que tem uma cena de um prisioneiro político muito impactante. Ele diz: “Você quer saber o que é imoral? Querra é imoral, pobreza é imoral, racismo é imoral…”. Para mim ficou evidente isso lendo “A Puta” e até escrevi algo semelhante para a orelha da primeira edição que o feio e o sujo não estão no exagero da cópula e sim na exploração, na desigualdade e na miséria (a mais obscena das palavras).
Você acha que a ideia do “corpo sagrado”, da “imagem e semelhança de Deus” foi a grande causadora desse afastamento, dessa ignorância em relação ao próprio corpo?
Márcia ::: Muito provavelmente, isso explicaria de forma satisfatória porque as pessoas têm tanta vergonha desse corpo, que é muito mais parecido com o corpo falho dos animais do que com o corpo santo.
Lisa ::: Se nos enxergássemos coletivamente como sendo um corpo e não como tendo um corpo, haveria um tempo de que …?
Márcia ::: todos falariam a mesma língua…
Lisa ::: Você sonha seus livros?
Márcia ::: O mote do “O enterro do lobo branco” surgiu de um sonho recorrente que tinha, então, sim, às vezes, escrevo a partir de sonhos.
Lisa ::: Se você pudesse escolher uma trilha sonora para cada livro da trilogia, qual/quais seriam?
Márcia ::: Nocturnes de Chopin, porque escrevi a maior parte dos três romances escutando essa música.
Lisa ::: Você tem escrito durante a quarentena?
Márcia :::Tenho escrito na quarentena o meu novo romance “Tempo de cão”, não no ritmo que desejo, mas ainda assim tateando… Logo chego lá…
Lisa ::: O que você tem lido ultimamente?
Márcia ::: Nesse instante estou relendo “A caverna” de José Saramago.
Lisa ::: Quando li o primeiro livro da trilogia do corpo, A Puta, que aliás tive a honra de escrever a orelha, não fazia a menor ideia que você pretendia escrever uma continuidade desse universo, só o primeiro livro já é um multiverso, nunca me pareceu ser uma obra para ser compreendida, sabe? Nunca me pareceu aquele tipo de livro que a gente discute em um bar e sabe exatamente do que se trata. Está mais para algo criado para suscitar questões. Embora tudo ali seja tão familiar, tão “demasiadamente humano”, como uma orelha, um feto, um corpo, uma vulva, um relacionamento, uma cópula. É como se fosse um grande ensaio poético filosófico da ordem do absurdo, no sentido absurdista mesmo: no sentindo que nos faz, como leitores(as)/autores(as), buscar constantemente um sentido, como buscamos para a própria existência.
Por que você fez isso conosco? A trilogia do Corpo é uma tese?
Márcia ::: A minha obra nasce de um desejo incontrolável de escrever, ainda que no início eu não saiba exatamente o que eu quero. A escrita faz com que eu me sinta um pouco mais habitável nesse mundo estranho. Eu acredito que o nosso estilo seja criado pelas nossas inaptidões, sempre tive muita dificuldade em contar as histórias de forma ordenada, porque a maioria das vezes pequenos detalhes me chamavam mais atenção do que a linha narrativa. Quando resolvi escrever “A Puta” tinha apenas uma noção do que eu queria fazer, o resto foi aparecendo na medida em que fui me entregando ao processo de escrita. Quando estou escrevendo um romance tento não manter as rédeas, tento acessar uma outra dimensão de consciência. Realmente não se deve procurar um sentido na trilogia, o mais importante é se deixar levar pelo ritmo e pelas imagens. A trilogia do Corpo não é uma tese porque não é uma tentativa de provar nada, apenas lançar os dados.
Lisa ::: isso de “não manter as rédeas” e “acessar uma outra dimensão de consciência” me fez lembrar que em toda trilogia há vários corpos que se multiplicam: corpos encarnados em vozes, em consciências, em outras formas de vida, em palavras que perderam o significado: eros/caos, homem/mulher/andrógino, morto/vivo/morto-vivo, antes/durante/depois, vácuo/oco/alma. Nada parece ser inocente, nada parece intocável ali, tudo parece estar contaminado. Aliás, você escreveu em “A Puta” que nada que multiplica pode ser inocente.
Existe criação destituída de segundas intenções? Você se considera inocente enquanto criadora?
Márcia ::: Curioso como agora a minha as minhas afirmações “não manter as rédeas” e “acessar uma outra dimensão de consciência” parecerão contraditórias rs. Não existe nenhum tipo de inocência na criação, a criação só existe porque precisamos dividir nosso inferno com alguém.
Lisa ::: Faz sentido. Pensando aqui na mitologia cristã. rs
Voltando as intenções, ali, bem no início, eu vi uma intenção, uma ótima intenção por sinal: “Sim. Foi isso. Eu vi a vertebra de Deus …” Depois acabei fazendo uma ponte também com outra intenção da mesma ordem. Mas foi no segundo livro da trilogia “O enterro do lobo branco”. Tem aquela repetição constante do tempo que fala do tempo que ainda não há: “Haverá um tempo em que …”
Esse “Sim. Foi isso.”, essa afirmação no início do livro, que também é o início da trilogia, esse “haverá um tempo”, essa repetição constante que fala do que ainda não há, foram intencionalmente uma homenagem à Clarice? Pois me remeteu de cara a frase de A Hora da estrela: “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou.”
Márcia ::: Não, esse início foi uma referência a um tempo sagrado, a um tempo que talvez virá depois do Apocalipse.
Lisa ::: mesmo não sendo a intenção ficou muito próxima dela “o universo que jamais começou”. Aliás, no terceiro livro, A Casa das Aranhas, a epígrafe é Clarice. Você definitivamente não é inocente. rs
E por falar em início, em inocência, em apocalipse, fim e começo, volto para o meio, na página 51 do primeiro livro. Você escreveu:
Olhava pro seu rosto e ficava tão fácil entender a tal da evolução. Comecei a duvidar de Deus, não por rebeldia, mais por constatação. Aquela que diz que não foi Adão e Eva, mas fomos levantando e virando homem.
Se Deus está morto, quem matou Deus: Nietzsche ou Darwin? O filósofo ou o cientista?
Márcia ::: Com certeza um pouco dos dois, eu posso não ser inocente, mas o Nietzsche e o Darwin também não são. Rs
Lisa ::: vocês são maravilhosamente culpados. rs
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Márcia Barbieri (1979) é brasileira. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno (ed. independente, 2009), As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011) e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta (Terracota, 2014), O enterro do lobo branco (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo prêmio São Paulo de Literatura 2018 e A casa das aranhas (Reformatório, 2019) semifinalista do prêmio Oceanos.